Crônicas - Humberto Campos

JESUS E SIMÃO

Jesus e Pedro

Humberto de Campos

Extraído do Livro: Estante da Vida – FEB

 

Retirava-se Jesus do lar de Jeroboão, filho de Acaz, em Corazim, para atender a um pedido de socorro em casa próxima, quando quatro velhos publicanos apareceram, de chofre, buscando-lhe o verbo reconfortante.

Haviam recebido as notícias do Evangelho do Reino, tinham fome de esclarecimento e tranqüilidade, suplicavam palavras que os auxiliassem na aquisição de paz e esperança.

O Mestre contemplou-lhes a veste distinta e os rostos vincados de funda inquietação, e compadeceu-se.

Instado, porém, por mensageiros que lhe requisitavam a presença à Excelso Benfeitor chamou Simão Pedro e pediu-lhe, ante os consulentes amigos:

– Pedro, nossos irmãos chegam à procura de renovação e de afeto… Rogo sejas, junto deles, o portador do Bem Eterno!… Ampara-os com a verdade, prossigamos em nossa tarefa de amor…

O apóstolo relanceou o olhar pelos circunstantes e, tão logo se viu a sós com eles, fêz-se

arredio e casmurro, esperando-lhes a manifestação.

Foi Eliúde, o joalheiro e mais velho dos quatro, que se ergueu e solicitou com modéstia:

– Discípulo do Senhor, ouvimos a Nova Revelação e temos o espírito repleto de júbilo!…

Compreendemos que o Messias Nazareno vem da parte do Todo-Poderoso arrancar-nos da sombra para a luz, da morte para a vida… Que instruções e bênçãos nos dás, oh! dileto companheiro das Boa Novas? Temos sede do reino de Deus que o Mestre anuncia!

Aclara-nos a inteligência, guia-nos o coração para os caminhos que devemos trilhar!…

Simão, contudo, de olhar coruscante, qual se fora austero zelador de consciências alheias, brandiu violentamente o punho fechado sobre a mesa, e falou, ríspido:

– Conheço-vos a todos, oh! víboras de Coramim!…

E, apontando o dedo em riste para Eliúde, aquele mesmo que tomara a iniciativa do entendimento, acusou-o, severamente:

– Que pretendes aqui, ladrão das viúvas e dos órfãos? Sei que ajuntaste imensa fortuna à

custa de aflições alheias. Tuas pedras, teus colares, teus anéis!… que são eles senão as lágrimas cristalizadas de tuas vítimas? Como consegues pronunciar o nome de Deus?…

Voltando-se para o segundo, na escala das idades, esbravejou:

– Tu, Moabe? A que viestes? Ignoras, porventura, que não te desconheço a miséria moral? Como te encorajaste a vir até aqui, após extorquir os dois irmãos, de quem furtaste os bens deixados por teu pai? Esqueces de que um deles morreu consumido de penúria e de que o outro enlouqueceu por tua causa, sem qualquer recurso para a própria

manutenção?

Em seguida, dirigiu-se ao terceiro dos circunstantes:

– Que buscas, Zacarias? Não te envergonhas de haver provocado a morte de Zorobatel, o

sapateiro, comprando-lhe as dívidas e atormentando-o, através de execráveis cobranças, no só intuito de roubar-lhe a mulher? Já tens o fruto de tua caça. Aniquilaste um homem e tomaste-lhe a viúva… Que mais queres, infeliz?

E, virando-se para o último, gritou:

– Que te posso dizer, Ananias? Há muitos anos, sei que fazes o comércio da fome, exigindo que a hortaliça e o leite subam constantemente de preço, em louvor de tua cupidez… Jamais te incomodaste com as desventuradas crianças de teu bairro, que falecem na indigência, à espera de tua caridade, que nunca apareceu!…

Simão alçou os braços para o teto, como quem se propunha irradiar a própria indignação, e rugiu:

– Súcia de ladrões, bando de malfeitores!… O Reino de Deus não é para vós!…

Nesse justo momento, Jesus reentrou na sala, acompanhado de alguns amigos, e, entendendo o que se passava, contemplou, enternecidamente, os quatro publicanos arrasados de lágrimas, ao mesmo tempo que se abeirou do pescador amigo, indagando:

– Pedro, que fizeste?

Simão, desapontado à frente daqueles olhos cuja linguagem muda tão bem conhecia, tentou justificar-se:

– Senhor, tu disseste que eu deveria amparar estes homens com a verdade…

– Sim, eu falei “amparar”, nunca te recomendaria aniquilar alguém com ela…

Assim dizendo, Jesus aceitou o convite que Jeroboão lhe fazia para sentar-se à mesa e, sorrindo, insistiu com Eliúde, Moabe, Zacarias e Ananias para que lhe partilhassem a ceia.

Organizou-se, para logo, bela reunião, na qual o verbo se mostrou reconfortante e enobrecido.

Conversando, o Mestre exaltou a Divina Providência de tal modo e se referiu ao Reino de Deus com tanta beleza, que todos os comensais guardavam a impressão de viver no futuro, em prodigiosa comunhão de interesse e ideais.

Quando os quatro publicanos se despediram, sentiam-se diferentes, transformados, felizes…

Jesus e Simão retiraram-se igualmente e, quando se acharam sozinhos, passo a passo, ante as estrelas da noite calma, o rude pescador exprobrou o comportamento do Divino Amigo, formulando perguntas, através de longos arrazoados.

Se era necessário demonstrar tanto carinho para com os maus, como estender auxílio aos bons? Se os homens errados mereciam tanto amor, que lhes competia fazer, a benefício dos homens retos?

O Cristo escutou as objurgações em silêncio e, quando o aprendiz calou as derradeiras reclamações, respondeu numa frase breve:

– Pedro, eu não vim à Terra para curar os sãos.

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