Aqueles que têm o hábito de estudar a vida dos primeiros missionários do Cristianismo já devem ter se acostumado com a velha fórmula empregada: humildade, paciência, tolerância, desprendimento, resignação, caridade e muito amor.
Em suas vidas não existiu espaço para ostentação, lamúrias, rancor, tristeza e ociosidade. O exemplo, a superação e a fé foram marcantes em suas peregrinações onde divulgaram a Boa Nova.
Muito interessante é poder constatar através desta crônica de Humberto de Campos – publicada pela FEB no livro Crônicas de Além-Túmulo (1937 – psicografia de Francisco Cândido Xavier) – que a personalidade de um dos mais importantes apóstolos do Cristo, quase dois mil anos depois, se mantém inalterada em sua humildade e simplicidade, sendo o apóstolo totalmente alheio ao brilho da matéria e das condecorações humanas, e, muito mais que isso, conserva seu estilo simples e amoroso no auxílio aos sofredores, sendo este seu mais importante trabalho.
Se nós esperamos um dia nos encontrar com esses vultos do Cristianismo em um paraíso para cobri-los com nossos elogios interesseiros e fúteis, podemos desistir deste ideal. Muito mais fácil será encontrá-los na figura de um simples andarilho que cuidará de nossas feridas do corpo e da alma, quando, desiludidos e saturados do brilho efêmero da matéria, nos tornarmos os pobres e os desiludidos da Terra.
Centro Espírita Vinhas do Senhor
Pouso Alegre/MG, 07 de novembro de 2014
20 – PEDRO, O APÓSTOLO
25 de agosto de 1936
Enquanto a Capital dos mineiros, dirigida pelos seus elementos eclesiásticos, se prepara, esperando as grandes manifestações de fé do segundo Congresso Eucarístico Nacional, chegam os turistas elegantes e os peregrinos invisíveis. Também eu quis conhecer de perto as atividades religiosas dos conterrâneos de Augusto de Lima.
Na Praça Raul Soares, espaçosa e ornamentada, vi o monumento dos congressistas, elevando-se em forma de altar, onde os altos religiosos serão celebrados. No topo, a custódia, rodeada de arcanjos petrificados, guardando o símbolo suave e branco da eucaristia, e, cá em baixo, nas linhas irregulares da terra, as acomodações largas e fartas, de onde o povo assistirá, comovido, às manifestações de Minas católica.
Foi nesse ambiente que a figura de um homem trajado à israelita, lembrando alguns tipos que em Jerusalém se dirigem, freqüentemente, para o lugar sagrado das lamentações, aguçou a minha curiosidade incorrigível de jornalista.
– Um judeu?! – exclamei, aguardando as novidades de uma entrevista.
– Sim, fui judeu, há algumas centenas de anos – respondeu laconicamente o interpelado. Sua réplica exaltou a minha bisbilhotice e procurei atrair a atenção da singular personagem.
– Vosso nome? – continuei.
– Simão Pedro.
– O Apóstolo?
E a veneranda figura respondeu afirmativamente, colando ao peito os cabelos respeitáveis da barba encanecida.
Surpreso e sedento da sua palavra, contemplei aquela figura hebraica, cheia de simplicidade e simpatia. Ao meu cérebro afluíam centenas de perguntas, sem que pudesse coordená-las devidamente.
– Mestre – disse-lhe, por fim -, Vossa palavra tem para o mundo um valor inestimável. A cristandade nunca vos julgou acessível na face da Terra, acreditando que vos conserváveis no Céu, de cujas portas resplandecentes guardáveis a chave maravilhosa. Não teríeis algumas mensagens do Senhor para transmitir à Humanidade, neste momento angustioso que as criaturas estão vivendo?
E o Apóstolo venerável, dentro da sua expressão resignada e humilde, começou a falar:
– Ignoro a razão por que revestiram a minha figura, na Terra, de semelhantes honrarias. Como homem, não fui mais que um obscuro pescador da Galiléia e, como discípulo do Divino Mestre, não tive a fé necessária nos momentos oportunos. O Senhor não poderia, portanto, conferir-me privilégios, quando amava todos os seus apóstolos com igual amor.
– É conhecida, na história das origens do Cristianismo, a vossa desinteligência com Paulo de Tarso. Tudo isso é verdadeiro?
– De alguma forma, tudo isso é verdade – declarou bondosamente o Apóstolo. – Mas, Paulo tinha razão. Sua palavra enérgica evitou que se criasse uma aristocracia injustificável, que, sem ele, teria que desenvolver-se fatalmente entre os amigos de Jesus, que se haviam retirado de Jerusalém para as regiões da Batanéia.
– Nada desejais dizer ao mundo sobre a autenticidade dos Evangelhos?
– Expressão autêntica da biografia e dos atos do Divino Mestre, não seria possível acrescentar qualquer coisa a esse livro sagrado. Muita iniqüidade se tem verificado no mundo em nome do estatuto divino, quando todas as hipocrisias e injustiças estão nele sumariamente condenadas.
– E no capítulo dos milagres?
– Não é propriamente milagre o que caracterizou as ações práticas do Senhor. Todos os seus atos foram resultantes do seu imenso poder espiritual. Todas as obras a que se referem os Evangelistas são profundamente verdadeiras.
E, como quem retrocede no tempo, o Apóstolo monologou:
– Em Carfanaum, perto de Genesaré, e em Betsaida, muitas vezes acompanhei o Senhor nas suas abençoadas peregrinações. Na Samaria, ao lado de Cesaréia de Felipe, vi suas mãos carinhosas dar vistas aos cegos e consolação aos desesperados. Aquele sol claro e ardente da Galiléia ainda hoje ilumina toda a minha alma e, tantos séculos depois de minhas lutas no mundo, ao lado de alguns companheiros procuro reivindicar para os homens a vida perfeita do Cristianismo, com o advento do Reino de Deus, que Jesus desejou fundar, com o seu exemplo, em cada coração…
– Os filósofos terrenos são quase unânimes em afirmar que o Cristo não conhecia a evolução da ciência grega, naquela época, e que as suas parábolas fazem supor a sua ignorância acerca da organização política do Império Romano: seus apóstolos falam de reis e príncipes que não poderiam ter existido.
– A ação do Cristo – retrucou o Apóstolo – vai mais além que todas as atividades e investigações das filosofias humanas. Cada século que passa imprime um brilho novo à sua figura e um novo fulgor ao seu ensinamento. Ele não foi alheio aos trabalhos do pensamento dos seus contemporâneos. Naquele tempo, as teorias de Lucrécio, expandidas alguns anos antes da obra do Senhor, e as lições de Filon em Alexandria, eram muito inferiores às verdades celestes que Ele vinha trazer à Humanidade atormentada e sofredora…
E, quando a figura venerada de Simão parecia prestes a prosseguir na sua jornada, inquiri, abruptamente:
– Qual o vosso objetivo, atualmente, no Brasil?
– Venho visitar a obra do Evangelho aqui instituída por Ismael, filho de Abraão e de Agar, e dirigida dos espaços por abnegados apóstolos da fraternidade cristã.
– E estais igualmente associado às festas do segundo Congresso Eucarístico Nacional? –
perguntei.
Mas, o bondoso Apóstolo expressou uma atitude de profunda incompreensão, ao ouvir as
minhas derradeiras palavras.
Foi quando, então, lhe mostrei o rico monumento festivo, as igrejas enfeitadas de ouro, os
movimentos de recepção aos prelados, exclamando ele, afinal:
– Não, meu filho!… Esperam-me longe destas ostentações mentirosas os humildes e os desconsolados. O Reino de Deus ainda é a promessa para todos os pobres e para todos os aflitos da Terra. A Igreja romana, cujo chefe se diz possuidor de um trono que me pertence, está condenada no próprio Evangelho, com todas as suas grandezas bem tristes e bem miseráveis. A cadeira de São Pedro é para mim uma ironia muito amarga… Nestes templos faustosos não há lugares para Jesus, nem para os seus continuadores…
– E que sugeris, Mestre, para esclarecer a verdade?
Mas, nesse momento, o Apóstolo venerando enviou-me um gesto compassivo e piedoso,
continuando o seu caminho, depois de amarrar, resignadamente, o cordão das sandálias.
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