Crônicas - Humberto Campos

A LENDA DA GUERRA

Humberto de Campos - A Lenda da Guerra

Centro Espírita Vinhas do Senhor
Pouso Alegre/MG, 13 de fevereiro de 2015.

A LENDA DA GUERRA

Humberto de Campos
Livro.: Estante da Vida – FEB

 

Quando o primeiro pastor de almas se elevou da Terra, no carro da morte, o Senhor esperou-o no Trono de Justiça e Misericórdia, de modo a ouvir-lhe o relatório alusivo às

ovelhas do mundo.

Nos céus, aves felizes entoavam cânticos à paz, enquanto serafins tangiam harmoniosas

citaras ao longe…

Tudo era esperança e júbilo no paraíso; no entanto, o pastor, que fora também no Planeta Terrestre o primeiro homem bom, trazia consigo dolorosa expressão de amargura. Os cabelos brancos caíam-lhe em desalinho, seus pés e mãos tinham marcas sangrentas e de seus olhos fluíam lágrimas abundantes.

O Todo-Poderoso recebeu-o, surpreendido.

O ancião inclinou-se, reverente; saudou-o, respeitoso, e manteve-se em profundo silêncio.

As interrogações paternais, todavia, explodiram afetuosas.

Como seguia o rebanho da Terra? observa-se o regulamento da Natureza? atendia-se ao caminho traçado? havia suficiente respeito na vida de todos? bastante compreensão no serviço individual? – Conforme o desdobramento dos negócios terrestres, abriria novos horizontes ao progresso dos homens. O dever bem vivido conferiria mais extenso direito

às criaturas.

O velhinho, contudo, ouvia e chorava.

Mais austeramente inquirido, respondeu, soluçando:

– Ai de mim, Senhor! As ovelhas que me confiastes, segundo me parece, trazem corações de animais cruéis. A maioria tem gestos de lobos, algumas revelam a dureza do tigre e outros a peçonha de víboras ingratas…

– Oh!… Oh!…

Gritos de admiração partiam de todos os lados.

De fisionomia severa, embora serena, o Senhor perguntou:

– Não têm as ovelhas a dádiva do corpo para o sublime aprendizado na escola terrestre?

– Sim – suspirou o ancião -, mas desprezam-no e insultam-no, todos os dias, através do relaxamento e da viciação.

– Não possuem a casa, o ninho doce que lhes dei?

– Mas fazem do campo doméstico verdadeiro reduto de hostilidades cordiais, no qual se combatem mutuamente, a distância do entendimento e do perdão.

– Não guardam a bênção do parentesco entre si?

– Transformam os elos consangüíneos em telas grossas de egoísmo, dentro das quais se

escarneceram.

– E os filhinhos? não conservam o sorriso das crianças?

– Convertem as ovelhinhas em pequenos demônios de vaidade, que perturbam todo o rebanho no curso do tempo.

– A pátria? não lhes concedi o grande lar para a expansão coletiva?

– Cristalizam a idéia de pátria em absurdo propósito de dominação, espalhando em seu nome a miséria e a morte.

– E o amor? determinei que o amor lhes constituísse sagrada lâmpada no caminho da vida…

– Perfeitamente – prosseguiu o pastor, desalentado -; entretanto, o amor para eles representa máquina de gozar na esfera física; quando levemente contrariados em seus jogos de ilusão, odeiam e ferem…

– A verdade? – tornou o Senhor, compassivo.

– Somente acreditam nela e aceitam-na, se os seus interesses imediatos, mesmo quando criminosos, não são prejudicados.

– E não te ouvem os ensinos, inspirados por meu coração?

O velhinho sorriu pela primeira vez, em meio da infinita amargura a lhe transparecer do rosto, e acentuou:

– De modo algum. Recebem-me com indisfarçável sarcasmo. Preferem aprender em queda espetacular no despenhadeiro, que ouvir minha voz.

– Mas, não combinam entre si, quanto aos interesses de todos?

– Não. Muita vez se mordem uns aos outros.

– Não estabelecem acordos pacíficos com os vizinhos?

– Intensificam as discórdias, atiram pedras ao próximo e o crime costuma ser o juiz de suas disputas.

– Todavia – continuou o Misericordioso -, e a Natureza que os cerca? Porventura, não lhes falam ao coração a claridade do Sol, a bênção do ar, a bondade da água, a carícia do vento, a cooperação dos animais, a proteção do arvoredo, o perfume da flores, a sabedoria da semente e a dádiva dos frutos?!…

– Infelizmente – esclareceu o ancião -, vagueiam como cegos e surdos, ante o concerto harmonioso de vossas graças, e oprimem a Natureza simbolizando gênios do mal, destruidores e despóticos.

– E a morte? – indagou o Altíssimo – não temem a justiça do fim?

– Parecem ignorá-la; peregrinam na Crosta do Planeta como duendes loucos, embriagados de ilusão, indiferentes ao vosso amor, endurecidos para com vossa orientação, despreocupados de vossa justiça…

Nesse momento, o Senhor Todo-Poderoso mostrou-se igualmente entristecido. Após meditar alguns minutos, falou ao pastor em pranto:

– Não chores, nem te desespere. Volta à Terra e retoma o teu trabalho. Outros companheiros contribuirão em teu ministério, encaminhando, corrigindo, refazendo e amando em meu nome… Alguém, contudo, estará presente no mundo, colaborando contigo e com os demais para que as minhas ovelhas infelizes compreendam a estrada do aprisco pela dor.

Em seguida, cumprindo ordens divinas, alguns anjos desceram aos infernos e libertaram

perigoso monstro sem olhos e sem ouvidos, mas com milhões de garras e bocas. Foi então que, desde esse dia, o monstro cego e surdo da guerra acompanha os pastores do bem, a fim de exterminar, em tormentas de suor e lágrimas, tudo o que, na Terra, constitua obra de vaidade e orgulho, egoísmo e tirania dos homens, contrários aos sublimes desígnios de Deus.

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